Tentativas de modernizar Jesus

Eis aqui uma amostra das muitas tentativas feitas por parte da igreja para apresentar um retrato contemporâneo de Cristo. Veremos que, em termos de fidelidade ao original, algumas têm sido mais bem-sucedidas que outras. Primeiro eu penso no Jesus asceta, que inspirou gerações de monges e eremitas. Ele não era tão diferente assim de João Batista, já que também se vestia com uma pele de ca melo, usava sandálias ou então andava descalço, e mas tigava gafanhotos com evidente prazer, e ao mesmo tempo renunciava aos prazeres da mesa e a desfrutar as alegrias da criação de Deus.
Seria difícil conciliar este retrato com a crítica dos seus contemporâneos, de que ele "veio comen do e bebendo". E depois vem Jesus, o pálido galileu. Foi o imperador Juliano, o apóstata, que tentou reintroduzir os deuses pagãos de Roma, depois que Constantino os havia subs tituído pelo culto ao Cristo. Dizem que, no seu leito de morte, em 363 d.C, Juliano disse: "Você venceu, galileu!" Suas palavras foram popularizadas da seguinte forma pelo poeta Swinburne, no século XIX: Tu conquistaste, ó pálido galileu! Teu respirar deixou o mundo em sombras. Esta imagem foi perpetuada na arte medieval e em vitrais: um Jesus com uma auréola celestial e uma compleição incolor, os olhos voltados para o céu e os pés sem sequer tocar o chão. Em contraste com as apresentações de Jesus como fraco, sofredor e derrotado, surgiu Jesus, o Cristo cósmico, que foi profundamente apreciado pelos líderes da igreja bizantina. Em contraposição aos bárbaros invasores, eles o representaram como o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o pantokrator, criador e dominador do universo.
Contudo, exaltado acima de todas as coisas, glorificado e reinando, ele parecia alienado do mundo real e até de sua própria humanidade tal como revelada na encarnação e na cruz. No extremo oposto do espectro teológico, os deístas iluministas dos séculos XVII e XVIII construíram sua própria imagem de Jesus como o mestre do senso comum, inteiramente humano e nada divino. O exemplo mais dra mático é a obra do versátil gênio Thomas Jefferson, pre sidente dos Estados Unidos (1801—1809). Rejeitando o so brenatural por considerá-lo incompatível com a razão, ele escreveu duas vezes sua própria edição dos Evangelhos, chamando a primeira de A Filosofia de Jesus de Nazaré (1804) e a segunda, A Vida e a Moralidade de Jesus de Nazaré (1820). Em ambos os livros, todos os milagres e mistérios foram sistematicamente eliminados. O que res tou foi puramente um guia popular para um mestre de moral meramente humana. Chegando ao século XX, deparamo-nos com uma grande variedade de opções. Dentre as mais conhecidas, duas delas devem sua popularidade a musicais. Temos Jesus o palhaço de Godspell, que passa o tempo todo cantando e dançando, e dessa forma capta algo da jovialidade de Jesus, mas que não chega a levar a sério sua missão. Algo parecido a este é Jesus Cristo Superstar, a celebridade desiludida, que uma vez pensou saber quem ele era, mas que no Getsêmani já não tinha mais tanta certeza: Então, eu estava inspirado... Agora, triste e cansado. Depois vem a impressionante invenção de Jesus como o fundador dos negócios modernos. Refiro-me a um livro intitulado The Man Nobody Knows (O Homem que Nin guém Conhece, 1925), que durante dois anos liderou a lista dos best-sellers nos Estados Unidos. Seu autor, Bruce Barton, era um publicitário americano que resolveu ex pressar sua revolta contra o Jesus anêmico e "maricas" ensinado na Escola Dominical da sua infância.
Além de pintar Jesus como um "garoto-propaganda" bronzeado e musculoso, simpático, jovial e sociável, ele o representou também como um líder de ardente convicção, cuja vida inteira foi uma história de conquistas e realizações, e que em seus ensinamentos enfatizava os segredos do sucesso nos negócios. O capítulo 6 do livro intitula-se "O Fundador dos Negócios Modernos". Vejam, escreve Bruce Barton, que com apenas doze anos de idade Jesus literalmente descre veu-se a si mesmo como alguém que precisava "tratar dos negócios do seu Pai"! Já se atribuiu a Jesus um profundo domínio da ciência econômica, bem como o sucesso nos negócios. Surpreen dentemente, é George Bernard Shaw que, com gozação implícita, nos apresenta Jesus como o economista. "Deci didamente", escreve ele, "quer se pense ou não que Jesus era Deus, tem-se que admitir que ele foi um economista político de primeira classe", o qual, entre outras coisas, recomendou distribuição igualitária. Mas os autores divergem completamente entre si quanto à natureza de sua economia. Por um lado existe a visão de Jesus como um capitalista, promotor da livre empresa, investimento e conservação, tanto que T. N. Carver foi capaz de afirmar, em seu livro The Economic Factor in The Messiahship of Jesus (O Fator Econômico na Messianidade de Jesus, 1922), que "todo aspecto essencial do sistema económico moderno é explicitamente demonstrado nos ensinamentos desse jovem judeu". Temos, por outro lado, Jesus, o socialista. Como exemplo quero citar Arthur Scargill, que foi eleito presidente da União Nacional dos Mineiros em 1981. Numa entrevista dada à imprensa naquela ocasião, ele disse que era cristão e que adorava os velhos hinos de Moody e de Sankey, dos quais o seu favorito era "Quão bondoso amigo é Cristo". Quando o pressionaram, perguntando se acreditava no Credo, primeiro ele tentou se safar e depois declarou: "Eu creio no cristianismo neste sentido: creio que Jesus Cristo era de fato um socialista". Fidel Castro, de Cuba, muitas vezes tem se referido a Jesus como "um grande revolucionário", e muitos têm tentado retratá-lo como Jesus, o lutador da liberdade, o guerrilheiro urbano, o Che Guevara do primeiro século, de barba negra e olhos faiscantes, como no Evangelho Segundo São Mateus de Pasolini, cujo gesto mais carac terístico era virar as mesas dos mercadores e expulsá-los do templo com um chicote. Dentre os esforços de retratar Jesus em termos revolu cionários, talvez o que tenha mais fundamento seja a novela Me Chamam de Carpinteiro, de Upton Sinclair. Havia, num vitral sobre o altar da Igreja de São Bartolomeu, em Nova Iorque, uma imagem de Cristo, que um dia tornou-se vivo, desceu e começou um ministério público na cidade. "Quem é você?", perguntava o povo. "Me chamam de Carpinteiro", respondia ele. E assim ele passou a ser o "Sr. Carpinteiro", e mais tarde "Profeta Carpinteiro", à medida que suas palavras e ações assemelhavam-se às de Jesus da Palestina. Ele também foi tentado (ofereceram-lhe um contrato de 1500 dólares semanais como astro de cinema); ressuscitou uma criança que havia sido atropelada por um carro, e vivia cercado de crianças; curou os enfermos e deficientes; resgatou "Maria Madalena" de sua vida de prostituição; e equilibrava-se na carroceria de um cami nhão a fim de berrar para a multidão acerca do amor e da justiça. Mas ele citou as denúncias de Amos acerca dos ricos indolentes, identificou-se com grevistas numa pas seata de protesto, investiu contra empregadores por esta rem alienando os trabalhadores do produto de seu trabalho, e quando, durante uma missa na Igreja de São Bartolomeu, ele pronunciou um longo discurso contra teólogos e dou tores em divindade ("Ai de vós, religiosos hipócritas!"), o jornal local acusou-o de ser um anarquista bolchevique e de "disfarçar a doutrina de Lenin e Trotsky com roupagens de revelação cristã". Sua última noite de vida ele a passou no sótão da sede do Partido Socialista. E finalmente a multidão, enraivecida com aquele "desbocado Profeta Ver melho", agarrou-o, despejou galões de tinta vermelha sobre sua cabeça, colocou-o de pé em cima de um vagão e levou-o ruas afora, gritando: "Salve! Salve o profeta bolchevique!" Atirado pela janela de um teatro, ele não se feriu e voltou para a Igreja de São Bartolomeu, saltou para dentro do vitral .... e eis que tudo tinha sido um sonho! Caso alguém venha a concluir que tais reconstituições da vida de Jesus não passam de tentativas saídas da imaginação de simples autores de ficção, darei como último exemplo um trabalho acadêmico sério intitulado Jesus, o Mágico. Eu acho que ele pode ser considerado, e com razão, mais uma tentativa de retratar Jesus em vestes antigas-modernas, no que seria uma forma conveniente e moderna de se ver livre dos milagres. E, com certeza, bastante significativo o fato de que o lançamento mais recente desse livro seja da Editora Aquariana.
A tese do professor Morton Smith é que, se bem que nos Evangelhos os seguidores de Jesus o apresentem como o místico Filho de Deus, os seus mais antigos oponentes o consideravam um mágico. Se gundo o professor Smith, documentos do século III (os quais, segundo ele, foram furtados e destruídos pelos cristãos) revelam que Jesus, durante a sua juventude, foi para o Egito, "onde se tornou um especialista em mágica e foi tatuado com símbolos e fórmulas mágicas"; que ele voltou para a Galileia e "tornou-se famoso por seus feitos mágicos"; e que finalmente ele uniu a si mesmo os seus seguidores através da refeição que instituiu, "inequivoca mente um ritual mágico". A evidência, conclui Morton Smith, dá-nos "um quadro coerente da vida e obra de um mágico". Esta seleção de treze diferentes retratos de Jesus ilustra a eterna tendência de moldar um Cristo que tenha um apelo moderno. Isto começou já na era apostólica, quando Paulo teve que advertir o povo quanto aos falsos ensinadores que andavam pregando "outro Jesus que não temos [os após tolos] pregado".
E é impressionante ver a criatividade com que as pessoas têm levado adiante as representações de Jesus que acabamos de considerar. Mesmo assim, todas elas são figuras anacrónicas. Cada geração voltou-se para ele com suas próprias idéias e aspirações, criando-o à sua própria imagem. Cada uma estava certa quanto à sua motivação (pintar um retrato contemporâneo de Jesus); só que o resultado acabava sendo, até certo ponto, errado (o quadro não era autêntico). O desafio que temos diante de nós é o de apresentar Jesus à nossa geração de tal forma que seja, ao mesmo tempo, histórico e contemporâneo, autêntico e atrativo, novo no sentido de recente (neos), mas não novo no sentido de ser uma novidade (kainos).
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